Sobre o art. 468 do Anteprojeto de Novo Código de Processo Civil. Estabilidade extraprocessual (coisa julgada) de decisão que não examina o mérito da causa. Fredie Didier Jr.

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Texto de Fredie Didier Júnior:

 

Prossigo em minha análise do projeto de NCPC.


É lição antiga a de que a sentença sem resolução do mérito não impede a repropositura da demanda. A regra está consagrada atualmente no art. 268 do CPC.


Sucede que esse mesmo art. 268 traz uma exceção à regra, quando impede a repropositura de demanda cujo processo anterior fora extinto sem exame do mérito em razão da verificação de litispendência, coisa julgada ou perempção (art. 267, V, c/c o art. 268 do CPC).


Assim, temos decisão que não examina o mérito que possui estabilidade com eficácia semelhante ao efeito negativo/impeditivo da coisa julgada: impede-se a renovação de um problema já resolvido.


Corretamente, Luiz Eduardo Mourão (Coisa julgada. Belo Horizonte: Forum, 2008) denominou esse fenômeno de coisa julgada formal: há coisa julgada sobre questão processual e, por isso, pode ser adjetivada como formal, em contraposição à coisa julgada material, advinda de decisões de mérito. Mourão não considera sinônimos os termos preclusão e coisa julgada formal, como costuma fazer a doutrina, exatamente porque a primeira tem eficácia apenas endoprocessual, enquanto a segunda, como visto, impede que se discuta uma questão decidida em outro processo. Trata-se de entendimento que adotei em meu Curso e que bem explica essa regra do art. 268 do CPC.


A jurisprudência e a doutrina, porém, estenderam a aplicação da norma, que atribui esse efeito impeditivo, a outras situações, além daquelas previstas no inciso V do art. 267 do CPC.


Não se admitirá a repropositura em qualquer caso de extinção do processo por invalidade/inadmissibilidade do procedimento (art. 267, I, IV, V, VI e VII, CPC), sem que se corrija o defeito que deu causa à extinção do processo. E, se o defeito for corrigido, a demanda será proposta em novos termos e não reproposta, obviamente. Trata-se de lição assente na doutrina e na jurisprudência.


O juízo de admissibilidade é decisão tanto quanto o juízo de mérito: possuem, certamente, objeto distinto, mas isso não autoriza a conclusão de que aquele merece tratamento menos rigoroso. O órgão jurisdicional faz dois juízos: um sobre a validade do processo e outro sobre a relação jurídica discutida, sendo que o primeiro é preliminar ao segundo. A imutabilidade somente pode recair sobre aquilo que foi decidido — obviamente, na extinção do processo sem exame do mérito, não há estabilidade sobre a questão de mérito, que não foi apreciada; mas pode haver coisa julgada quanto à admissibilidade do processo, que foi apreciada. Não há resolução de mérito, mas há resolução sobre o processo; há decisão, que estabelece um preceito, que precisa ser respeitado.


É certo, então, que não se pode retirar do juízo de inadmissibilidade do processo a aptidão de impedir a renovação da demanda, chame-se ou não essa vedação de coisa julgada.


O juízo de inadmissibilidade consiste na aplicação da sanção de invalidade do procedimento; é uma decisão constitutiva negativa, que resolve definitivamente a questão da admissibilidade do procedimento; como sanção que é, tem de ser respeitada e cumprida; não teria sentido qualquer interpretação que permitisse à parte “escapar” à sanção, renovando a demanda com os mesmos defeitos já identificados.


Além disso, a repropositura não poderá ocorrer, por razões físicas, no caso de extinção do processo em razão do falecimento do autor aliado à circunstância de que o direito discutido é intransmissível.


Rigorosamente, então, somente é possível repropor uma demanda cujo processo fora extinto sem exame do mérito nos casos de extinção por revogação (art. 267, II, III e VIII, CPC).
Finalmente, há quem defenda a possibilidade de ação rescisória de sentença que não resolve o mérito da causa, nos casos em que a repropositura da demanda é proibida, exatamente porque há uma estabilidade da decisão que se projeta para além do processo em que foi proferida (DIDIER Jr., Fredie, CUNHA, Leonardo José Carneiro da. Curso de direito processual civil. 8ª Ed. Salvador: Editora Jus Podivm, 2010, v. 3, p. 365; MOURÃO, Luiz Eduardo. Coisa julgada. Belo Horizonte: Forum, 2008; SOUZA, Bernardo Pimentel. Introdução aos recursos cíveis e à ação rescisória. 2 ed. Belo Horizonte: Mazza Edições, 2001, p. 501; YARSHELL, Flávio Luiz. Ação rescisória. São Paulo: Malheiros, 2005, p. 163-164; TFR, 2ª Seção, AR n. 1.501/RJ, rel. Min. Eduardo Ribeiro).


O Projeto de NCPC parece ter atentado para a correta interpretação do art. 268 do CPC.
Vejamos, porém, se a solução proposta é boa.


O art. 468 do NCPC repete a regra antiga: “A sentença sem resolução de mérito não obsta a que a parte proponha de novo a ação”.


O § 1º desse art. 468 é que traz a regra nova: “no caso de ilegitimidade ou falta de interesse processual, a nova propositura da ação depende da correção do vício”.


Há algumas observações que precisam ser feitas a esse dispositivo.


a) Elimina-se a proibição de repropositura da demanda, já tradicional, nos casos de extinção pelo reconhecimento da coisa julgada, litispendência ou perempção. Não há justificativa alguma para essa mudança. Como seu viu,a doutrina e a jurisprudência ampliaram a aplicação da norma anterior, sem eliminar a hipótese já existente.


b) A Comissão pretendeu incorporar duas hipóteses expressas de proibição de repropositura: nos casos de carência de ação (ilegitimidade ad causam e falta de interesse de agir).


A ideia é boa, mas não há razão para não incluir as hipóteses de extinção do processo por inadmissibilidade/invalidade: indeferimento da petição inicial, falta de pressuposto processual, existência de convenção de arbitragem etc. Como visto, era essa a interpretação que já se tinha do dispositivo e não há razão para que um novo CPC não a incorpore ao seu texto.


c) O § 1º do art. 468 do NCPC refere a “nova propositura da ação”. Como visto, se o defeito é corrigido, a ação não será novamente proposta; em verdade, outra ação será proposta. Se a demanda é proposta contra a parte legítima, em vez de repetir a demanda contra aquele cuja ilegitimidade ad causam fora reconhecida anteriormente, trata-se de uma nova demanda e não uma nova propositura da mesma demanda anterior. A redação precisa ser corrigida, pois há erro técnico, como se vê.


d) Seria muito bom que o projeto esclarecesse o cabimento de ação rescisória das sentenças que, não obstante não tenham examinado o mérito da causa, impedem a repropositura da demanda. Opinamos pela rescindibilidade de tais decisões.


Enfim, o art. 468 do NCPC pretendeu ser um avanço ao texto anterior, o que é um grande mérito, mas tem algumas falhas que precisam ser corrigidas: i) a proibição de repropositura deve ser estendida a todas as hipóteses de extinção do processo em razão da invalidade do procedimento; ii) é preciso corrigir a redação do § 10 do art. 468, que equivocadamente menciona a “nova propositura da ação”, quando não é o caso; iii) esclarecer a questão da rescindibilidade de tais decisões.

sábado, 19 de junho de 2010


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